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CARTÉIS E INDUÇÃO A CONDUTA UNIFORME: INFRAÇÕES POR OBJETO OU PER SE?

Publicado 22/12/20 por Franceschini e Miranda Advogados.

O TEMA À LUZ DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO[1].

José Inácio Gonzaga Franceschini

[1] Este artigo contou com a revisão e inestimáveis comentários dos Profs. Lúcia Helena Salgado (UERJ) e Custódio da Piedade Ubaldino Miranda (USP), que muito contribuíram para seu aprimoramento, tanto sob a perspectiva econômica, como jurídica. O Autor agradece efusivamente a ambos.

 

 

  1. Introdução

Desde a Lei n.º 4.137, de 10 de setembro de 1962, até a Lei n.º 8.884/94, de 11 de junho de 1994, a exegese da norma concorrencial era claramente influenciada pelos conceitos do “antitruste” norte-americano. Neste ponto, estava o CADE mais preocupado com as realidades do mercado, com o recorrente recurso à Regra da Razão, até mesmo em temas que alhures eram tratados como infração per se, como é o caso do cartel.

De fato, enquanto vigente a Lei n.º 8.884/94 e mesmo após a promulgação da Lei n.º 12.529, de 30 de novembro de 2011, atual Lei Concorrencial, debruçava-se sempre o Conselho sobre a análise dos efeitos das condutas anticompetitivas, não só como conditio sine qua non para sua tipificação como infracionais, mas também para fins da dosimetria da pena imposta. A norma legal, é bem verdade, permitia (e permite) a punição do infrator por sua postura ilegal, “ainda que (os efeitos) não sejam alcançados[2], expressão esta que almejava e ainda visa a repressão à tentativa eficaz, porém desprovida de sucesso, mas de qualquer modo tal conclusão era sempre fruto da perquirição sobre os efeitos da conduta.

Os efeitos (mesmo quando não alcançados) precisavam, destarte, ser sempre demonstrados

Todavia, paulatinamente, as manifestações pretorianas administrativas foram deixando de lado a noção básica dos efeitos

 

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[1] Este artigo contou com a revisão e inestimáveis comentários dos Profs. Lúcia Helena Salgado (UERJ) e Custódio da Piedade Ubaldino Miranda (USP), que muito contribuíram para seu aprimoramento, tanto sob a perspectiva econômica, como jurídica. O Autor agradece efusivamente a ambos.
[2] Idêntica redação tanto do caput do art. 20 da Lei n.º 8.884/94, como do art. 36 da Lei n.º 12.529/11.

 

 

da conduta, ensejando que, pouco tempo depois do início de vigência da Lei n.º 12.529/11, a hermenêutica adotada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE em relação ao tema dos cartéis e da indução à conduta uniforme, previstas no art. 36, § 3º, desse diploma, se alterasse radicalmente.

De fato, a despeito da inequívoca progênie norte-americana do Direito Concorrencial brasileiro[3], e sem qualquer alteração da tipologia daquelas infrações nas diversas modificações legislativas, os integrantes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE passaram, a partir do início dos anos 2000, a sofrer forte influência do sistema jurídico europeu, globalizado pela atuação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, entidade internacional da qual o Brasil não é país-membro[4], mas que nela tem atuação significativa, principalmente neste campo, como “associado”, “participante” ou “convidado”.

As relações de cooperação entre o Brasil e a OCDE tiveram início na década de 1990[5] e se intensificaram a partir de 1999, quando o Conselho da organização decidiu criar um programa especificamente direcionado ao País[6], e se consolidaram quando, em 2000, o Brasil tornou-se signatário da Convenção sobre o Combate de Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais[7], de 17 de dezembro de 1997.

Assim, em maio de 2007, o Conselho

 

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[3] O encanto pelas facilidades na execução da legislação concorrencial trazidas pela internação de conceitos do direito comunitário concorrencial chegou ao ponto de o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo considerar que “o regime instituído na Europa … veio a inspirar a legislação brasileira” (cf. item 21 do Voto por ele proferido em 30 de janeiro de 2013 no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, sendo Representante a SDE, ex officio, e Representada a Associação Brasileira de Agências de Viagens do Rio de Janeiro (ABAV-RJ)).
[4] Noticia-se a solicitação de ingresso na organização, pelo Governo brasileiro, em 30 de maio de 2017, apud o jornal “O Estado de S.Paulo”, edição de 31 de maio de 2017, caderno B6.
[5] Cf. http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/diplomacia-economica-comercial-e-financeira/15584-o-brasil-e-a-ocde. Acessado em 29 de maio de 2017.
[6] Cf. “Pontos de Contato Nacional das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais”, no sítio http://www.pcn.fazenda.gov.br/assuntos/ocde/o-brasil-e-a-ocde. Acessado em 29 de maio de 2017. O Brasil, juntamente com outros quatro países emergentes (África do Sul, China, Índia e Indonésia) foi considerado um dos “Key Partners” da organização.
[7] Promulgada pelo Decreto n.º 3.678, de 30 de novembro de 2000.

 

 

Ministerial da OCDE, decidiu “fortalecer a cooperação da OCDE com o Brasil” por meio de programas de engajamento ampliado (enhanced engagement), que promoveu a realização de estudos a respeito do País, além de criar um sítio que lhe é dedicado[8], com vistas a uma possível adesão à organização. A participação do Brasil no Comitê de Competição da OCDE tem sido particularmente ativa.

A influência europeia, todavia, moldou-se à façon à cultura brasileira historicamente dirigista e de tendência utilitariamente heril, quando não intervencionista, a qual já se fazia sentir quando o sistema de intervenção estatal na economia vigente, antes da Constituição Federal de 1988, viu-se substituído, no campo concorrencial, pela tentativa de introdução abscôndita e indireta da possibilidade de responsabilidade objetiva em matéria repressiva, que, não fora inconstitucional, permitiria maior desembaraço para a Administração Pública, no magistério punitivo, que se satisfaria não mais com a verdade real dos fatos, mas com a verdade punitiva formal, instrumentalizada por ritos procedimentais meramente formais, substitutivos do devido processo legal substantivo.

Desta forma, procurou-se, afrontando direitos e garantias individuais, notadamente o da presunção da inocência (art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna), inverter o ônus da prova, ferindo de morte o cediço princípio de que este cabe à acusação, ou, nos termos do art. 156 do CPP, “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”.

Como ensina Guilherme de Souza Nucci, “o estado de inocência é indisponível e irrenunciável, constituindo parte integrante da natureza humana, merecedor de absoluto respeito, em homenagem ao princípio constitucional regente da dignidade da pessoa humana. (…) Noutros termos, a inocência é a regra; a culpa, a exceção. Portanto, a busca pelo estado excepcional do ser humano é ônus do Estado, jamais do indivíduo. Por isso, caso o réu assuma a autoria do fato típico, mas invoque a ocorrência de excludente de ilicitude ou culpabilidade, permanece o ônus probatório da acusação em demonstrar ao magistrado a fragilidade da excludente e, portanto, a consistência da prática do crime[9].

 

  1. A Visão do CADE: Evolução

 

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[8] www.oecd.org/brazil.
[9] Nucci, Guilherme de Souza, “Princípios constitucionais penais e processuais penais”, 2ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp. 264/266.

 

 

É incontroverso que o cartel e seu supedâneo, a indução à conduta uniforme, representam as condutas infracionais mais severas previstas na Lei Concorrencial. A gravidade dessas condutas anticompetitivas deveriam merecer da autoridade a atenção compatível com os efeitos socialmente danosos, por elas causadas, não apenas em termos punitivos, mas também de sua compreensão, de sua origem, motivação, contextualização e prevenção.

Infelizmente, porém, o que se vê é a exacerbação progressiva da atividade punitiva, como se o agravamento permanente da sanção e a exorbitância das multas tivessem efeito dissuasor eficaz, sem efeitos colaterais deletérios, inclusive em termos de credibilidade das instituições e da cultura da concorrência.

A conclusão é ainda mais grave na medida em que, embora qualquer intervenção estatal seja sempre, necessariamente, um elemento limitador do princípio maior da livre iniciativa e afrontoso ao da autonomia da vontade, o almejado efeito dissuasor é tão-somente presumido, Deus ex machina. A autoridade sequer tem a preocupação de verificar ex post a eficácia ou os resultados das decisões por ela adotadas, que nada impedem venham eventualmente se comprovar inócuas, deletérias ou mesmo anticompetitivas.

É notório que impostos expropriatórios ou penas capitais geram efeitos diametralmente opostos aos pretendidos. De igual forma, penas incompatíveis com os efeitos danosos resultantes da conduta anticoncorrencial, ofensivas aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e condenações injustas não amparadas na verdade real ou no contexto dos fatos, levam ao descrédito da norma perante a Sociedade, podendo até mesmo incentivar condutas anticompetitivas em retorsão.

Por vezes, atitudes templárias da autoridade buscam amparo para suas conclusões na leitura dogmática e acrítica de manifestação genérica, da OCDE[10], no sentido de que os cartéis gerariam

 

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[10] Cf. o Relatório “Hard Core Cartels 2000”, “New Initiatives, Old Problems: A Report on Implementing the Hard Core Cartel Recommendation and Improving Co-operation”, elaborado pelo Competition Law

 

 

sobrepreços estimados entre 10 e 20% comparados ao preço praticado em um mercado competitivo[11].

Não se cogita, de outro lado, do dano social mensurável, causado por condenações exacerbadas ou injustas, que geram ineficiências igualmente visíveis, seja em termos de perdas de investimentos produtivos, de manutenção e/ou geração de empregos, de inovação, de qualidade de produtos e volume de bens, além da possível recuperação de margem a longo prazo, por parte do condenado que se considere injustiçado, a custo do consumidor. Essa reação ainda mais se tem por plausível, máxime quando se sabe que o dano causado infundadamente à imagem e reputação, ativos intangíveis das empresas, é inestimável.

São conhecidos os tipos de erros que podem ser cometidos, na teoria estatística, na realização de um teste de hipóteses, os erros tipos 1 e 2. No caso, o trato mandriônico da hipótese concreta do cartel ou da indução à conduta uniforme e o error in judicando pode não apenas, dado o descaso com a contextualização dos fatos, com a análise de poder de mercado das partes e com a perquirição dos efeitos concretos da conduta anticoncorrencial, resultar tanto na subpunição do infrator consciente, como na hiperpunição do infrator eventual ou, pior, na punição, qualquer que seja o grau, do inocente ou do incapaz de abusar de poder econômico de quem deste não

 

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and Policy Committee (CLP), onde se lê: “International hard core cartels that have recently been exposed have cost individuals and businesses many hundreds of millions of US dollars annually in the United States alone – global overcharges on an annual basis are unknown but obviously much higher.1 • These recently exposed cartels have affected over US$10 billion in US commerce, which implies overcharges by these particular cartels of US$ one billion in the United States alone, and total global overcharges by these particular cartels in the billions of dollars.2 • In addition to those overcharges, these cartels have caused waste and inefficiency that has been even more harmful to countries’ economies and to global welfare. It is estimated that the average illegal gain from price fixing is 10 per cent of the selling price, but in such cases the harm to society may amount to 20 per cent of the volume of commerce affected by the cartel”. http://www.oecd.org/competition/cartels/2752129.pdf. Acessado em 29 de maio de 2017.
[11] Cf. sítio http://www.cade.gov.br/servicos/perguntas-frequentes/perguntas-sobre-infracoes-a-ordem-economica.

 

goze.

Trata-se, em regra, do desprezo absoluto do princípio do in dubio pro reo e da permissibilidade da condenação, não isenta de dúvida razoável, muitas vezes até mesmo da própria materialidade da infração e, com maior frequência, do nexo causal. Assim, por exemplo, empresas estrangeiras que sequer atuam diretamente no Brasil são por vezes condenadas na mera presunção de que suas condutas – sobre as quais sequer muitas vezes há evidências robustas – poderiam (e o tempo verbal condicional é intencional) ter tido algum efeito, potencial, no mercado brasileiro.

Nestes casos, contraditoriamente, a Sociedade, titular do bem jurídico protegido pela legislação concorrencial (art. 1º, parágrafo único, da Lei n.º 12.529/11), torna-se vítima da própria execução da Lei de Regência.

O pensamento sobre a matéria no CADE tem se mostrado oscilantemente hiperbólico.

Desde seus primórdios até 2013, cerca de um ano após a vigência da Lei n.º 12.529/11, havia generalizada repulsa entre os Conselheiros do CADE em acolher a tese norte-americana da infração per se, mesmo em tema de cartéis, entendendo-se que o conceito era incompatível com o sistema jurídico brasileiro, assim privilegiando o princípio constitucional da presunção da inocência.

Recorrentemente, portanto, a análise das condutas anticompetitivas era feita sob a égide da Regra da Razão, mesmo para casos de cartel hard core e de indução à conduta uniforme.

A metodologia de análise de condutas anticompetitivas era assente e minuciosa, desenvolvendo-se em etapas pré-estabelecidas, a saber: (1) identificação da natureza da conduta e definição de seu enquadramento legal, (2) verificação da existência de evidências suficientes das condutas nos autos, (3) delimitação do mercado relevante, (4) estimativa das participações no mercado relevante, (5) análise das condições concorrenciais, efetivas e potenciais, no mercado relevante, (6) avaliação dos danos anticoncorrenciais da conduta sobre este mercado, (7) exame de possíveis ganhos de eficiência econômica e outros benefícios gerados pela conduta e (8) avaliação final dos efeitos anticompetitivos, ao menos concretamente potenciais, e das eficiências econômicas da conduta. Adotados esses parâmetros, somente deveriam ser condenadas as condutas cujos efeitos anticompetitivos fossem demonstrados e, ainda assim, não fossem suficientemente contrabalançados por possíveis benefícios/eficiências compensatórios[12].

Mesmo em casos de cartelização, recomendava-se cautela em relação a denúncias de condutas praticadas por microempresas, empresas de pequeno porte e outros agentes de mercado de capacidade econômica restrita do ponto de vista antitruste. De fato, considerava-se que seria difícil visualizar alguma hipótese em que o remédio antitruste fosse eficiente para equacionar tais problemas concorrenciais, sendo certo que, se a atividade econômica fosse pequena, a perda social total seria igualmente diminuta e o custo de um processo provavelmente não seria socialmente justificável[13], ou seja, de minimis non curat praetor. Recomendava-se, em tais hipóteses, a prevalência de medidas de advocacia da concorrência.

Tinha-se em mente, rotineiramente, a válvula de escape dos efeitos da conduta questionada em relação ao mercado, ainda que estes, quando malsãos, não fossem alcançados.

Assim, exempli gratia:

O Conselheiro Celso Campilongo, nos autos do Processo Administrativo n.º 08000.019708/1996-99, analisando suposta conduta anticoncorrencial, a partir da imposição de tabela de preço por sindicato, concluiu que a existência dela não era suficiente para caracterizar a conduta anticoncorrencial, não constituindo, portanto, um ilícito per se, visto que não acarretava obrigatoriamente a uniformização de conduta entre os agentes. Como a tabela, in casu, não possuía caráter compulsório, obrigando sua adoção pelos associados do sindicato e também não era capaz de influenciar o mercado de forma significativa e continuamente, não se poderia falar em ilícito. A tabela, portanto, não passaria de mero indício de uma conduta potencial para influenciar

 

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[12] Cf. Voto do Conselheiro Ricardo Machado Ruiz na Averiguação Preliminar n.o 08012.007813/2006-05, de 23 de fevereiro de 2011, sendo Representante Posto Líder Ltda. e Representadas: Natural Gás Distribuidora Ltda. e Potigás – Companhia Potiguar de Gás.
[13] Cf. Voto do Conselheiro Olavo Zago Chinaglia no Processo Administrativo n.º 08012.001822/2003-31, de 1º de setembro de 2010, sendo Representante o Ministério Público do Estado de São Paulo e Representadas Funerária Atibaia Ltda.-ME, Funerária São Lázaro Ltda.-ME, Funerária Patrocínio – José Carlos Patrocínio – ME., Funerária São José – Flávio Amoldo Patrocínio Atibaia – ME, Funerária Oscar Patrocínio – ME e Funerária San Marco – Napolitano Comércio e Serviços Funerários Ltda – EPP.

 

 

o comportamento uniforme entre os agentes, mas jamais prova suficiente para condenar a conduta[14].

 

No mesmo sentido, no Processo Administrativo n.º 08012.005994/2004-65, onde foi comprovada a edição de tabela por Sindicato, em seu voto, o Conselheiro Fernando Furlan determinou o arquivamento do processo, tendo em vista que, no seu entendimento, tal prática não ocasionava efeitos anticompetitivos. Segundo a análise do mercado então realizada, este não apresentava condições estruturais favoráveis à realização da prática, bem como não existia mecanismo suficiente de coerção para assegurar a adoção da tabela pelos filiados ao Sindicato[15].

 

Ainda, em julho de 2007, o Conselheiro Abraham Benzaquen Sicsú, em seu voto, na Averiguação Preliminar n.º 08012.002544/02-59, entendeu que para a configuração do ilícito de cartel não bastaria a prova da existência de uma simples reunião entre concorrentes: “Para caracterizar a prática de cartel seriam necessários elementos comprovando a ocorrência de combinação entre os agentes econômicos como ‘realização de reuniões ou telefonemas para discutir preços, coincidências nas datas dos reajustes de preços que não podem ser explicadas por elevação de custos, existência de um sindicato de classe orientando para a fixação de preços uniformes, etc.”.

 

A promulgação da Lei n.º 12.529/11 não alterou esse panorama, mesmo porque não modificou a tipologia das infrações, nem a própria redação do texto legislativo. Nenhuma modificação legislativa possibilitou a mudança da intepretação, fruto quiçá e tão-somente de conceitos de “economia política”.

 

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[14] Processo Administrativo n.º 08000.019708/1996-99, Conselheiro Relator Celso Fernandes Campilongo, julgado em 29.05.2002. Representante: SDE. Representado: Sindicato das Empresas de Turismo do Estado de São Paulo – SINDETUR.
[15] Processo Administrativo n.º 08012.005994/2004-65, Conselheiro Fernando Furlan, julgado em 11.11.2009, sendo Representante Leopoldo Ubiratam Carreiro Pagotto e Representado o Sindicato das Empresas de Artes Fotográficas no Estado de São Paulo.

 

 

Tem-se, assim, que a introdução no CADE decorreu, não de comando legal, mas de nova interpretação de seus termos, ao sabor dos discípulos da escola europeia[16].

Como muito bem disse a Conselheira Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51[17], “87. É verdade que os artigos 36 e 37 da lei no 12.529/11 não fazem referência explícita ao fato de que uma determinada conduta deve ser compreendida ´por objeto´ (ou per se). Por isso, a priori, apenas lendo cuidadosamente a lei, não se pode dizer quais as condutas o legislador pensou que pudessem ser interpretadas desta forma, ao impor na lei o ´por objeto´ (…)”.

 

Assim, o conceito de infração “por objeto” foi introduzido na jurisprudência do CADE pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18[18], julgado em 20 de fevereiro de 2013.

A decorrência imediata foi a de que dispensava-se a autoridade de examinar o caso com a profundidade que se exigiria de um pronunciamento condenatório, amolentada em seu ímpeto e dispensada da labuta investigativa, deixando o Administrado à mercê do viés repressivo, que se satisfazia com “alguma” materialidade da infração, não infrequentemente questionável, em geral indireta, e virtualmente nenhuma preocupação com o nexo causal e quiçá em sua maior parte inteiramente dissociado da verdade real, do contexto e dos efeitos da conduta inquinada de anticoncorrencial.

Como afirmou o Conselheiro naquele Voto[19]:

 

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[16] Segundo o Voto-vista do Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, sendo Representante SDE, ex officio e Representada a Associação Brasileira de Agências de Viagens do Rio de Janeiro (ABAV-RJ): “20. Trata-se de um sistema de previsões normativas evidentemente inspirado no regime comunitário europeu de proteção e defesa da concorrência, cuja origem mais remota está nos artigos 65 e 66 do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, assinado em Paris em 1951”.

[17] Voto no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51, de 5 de dezembro de 2016, sendo Representante a SEAE/MF e Representados Liquigás Distribuidora S/A (ex-Tropigas), Supergasbras (ex-Minasgás Distribuidora de Gás Combustível Ltda) e Paragás Distribuidora Ltda.

 

[18] Para mais informações, vide Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18.

[19] Loc. cit.

 

 

97. Tais circunstâncias (tipificação expressa e, sobretudo, presunção de ilegalidade pelo objeto), fazem, como exposto acima, com que se tome completamente desnecessária qualquer análise de estruturas de mercado, definições de mercado relevante ou considerações de poder de mercado dos agentes para que a autoridade possa, prima facie, determinar a presunção de ilicitude da conduta. Para tanto, basta que haja, a meu ver, a prova objetiva de sua prática. Também afastam completamente a regra de minimis estabelecida na legislação, relativa ao controle de 20% ou mais do mercado, pois tal regra aplica-se especificamente à presunção de posição dominante, sendo que a conduta aqui tratada não se enquadra nas categorias de abuso de posição dominante, mas sim em conduta tendente a influenciar a adoção de práticas de preço uniformes.

Finalmente, as circunstâncias da conduta em questão igualmente afastam, por completo, a necessidade de perquirir acerca de efeitos, mesmo que potenciais, para a finalidade de presumir-se sua ilicitude, pois se trata, como já visto, de ilicitude pelo objeto e não pelos efeitos. Derradeiramente, uma vez que a ilicitude do objeto decorre das circunstâncias objetivas da conduta e de seu caráter não acessório a qualquer outro objetivo lícito distinto da orientação de preços, e que o próprio texto legal dispensa o elemento volitivo para a caracterização do ilícito, tal presunção de ilicitude independe, também, no regime da lei nacional, de qualquer consideração sobre a intenção subjetiva (i.e., boa ou má-fé) dos agentes”.

 

Em regra, restou ao Representado, notadamente quando contasse a autoridade com o suporte de Acordo de Leniência, para ela tido como regina probatorium, merecedora de presunção de credibilidade iuris et de iure (o que não ocorre sequer em caso de delação premiada criminal), com a leitura da dantesca frase subliminarmente insculpida nas notificações formais de citação inicial ao umbral de processo eminentemente hostil à defesa: “lasciate ogni speranza voi ch’entrate[20].

 

Em resumo, substituiu-se a anfractuosidade do contraditório substantivo, revelador da verdade real, pela linearidade de um fastidioso rito formalístico de final previsivelmente condenatório e apenas confirmatório da verdade punitiva antevista. O processo passou a ser apenas a forma de se amoldar os fatos à decisão previamente incriminatória e não o iter que, palmilhado com a revelação dos fatos, levasse ao decisum.

 

Mas não ousou tanto o Voto condutor da nova interpretação jurídica, ressalvando explicitamente o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo que, longe de adotar a tese da infração per se, de presunção iuris et de iure, o ”30. Mencionado trecho do guia europeu (o Guidelines on the Application of 101(3) TFEU (formerly Article 81(3) TEC), no qual se inspirara) deixa claro que a presunção de ilicitude que acompanha as condutas anticompetitivas pelo objeto é baseada na experiência, no conteúdo do acordo e na sua alta probabilidade de prejudicar o bem coletivo protegido pela lei. Contudo, trata-se apenas de uma presunção iuris tantum, e não significa que

 

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[20] Alighieri, Dante, “La Divina Commedia”, Inferno, Canto Terceiro.

 

 

se esteja adotando uma ficção absolutamente descolada da realidade, nem uma presunção irrefutável” (grifou-se).

 

Aliás deixou isto bem claro, em seu voto: 99. Tudo isso não significa, evidentemente, que se trate de ‘infração per se’, até porque essa expressão sequer existe na legislação nacional. Em outras palavras, não significa que se trate de presunção iuris et de iure de ilegalidade. Invertia-se, porém, inconstitucionalmente e, em verdade, o praeter legem, o ônus da prova, ou, em suas palavras “sendo ônus específico de quem alega esse tipo de defesa prová-la[21] (grifou-se).

Ao menos se reconheceu que não há infração per se na legislação nacional.

Como que sub-repticiamente, porém, passou-se a equiparar os conceitos de “infração por objeto” e “infração per se”. O fenômeno teve início ao final do mesmo ano de 2013, como se vê do Voto do Conselheiro Ricardo Machado Ruiz no Processo Administrativo n.º 08012.011027/2006-02[22]: “337. Em relação ao aspecto jurídico, apenas para questão de registro, precedentes do CADE revelam que nos casos em que houver a atuação de um cartel, será exigida apenas a prova da existência da conduta para a configuração da infração, presumindo-se a potencialidade de que sejam produzidos efeitos prejudiciais à concorrência. Dessa forma, discussões como estabelecido no caso do Cartel de Britas’, verificadas as condições de existência de um cartel clássico, alcança-se um quantum probatório em que uma decisão pode ser exarada, sendo desnecessário realizar a prova dos efeitos. Isto é, seria uma espécie de delito ´per se´” (grifou-se).

Mais explícito, porém, foi o voto do Conselheiro Alessandro Octaviani Luis[23]: “19. A correspondência que se estabeleceu entre ‘ilícitos per se’ (proveniente da experiência norte-americana) e ‘ilícitos por objeto’

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[21] Voto-vista, locus cit.
[22] – Referência: Votos no Processo Administrativo n.º 08012.011027/2006-02, de 28 de agosto de 2013, sendo Representante: SDE, ex officio, e. Representados: Deutsche Lufthansa AG e outros.
[23] Loc. cit.

 

 

(dicção da lei brasileira) conduz à falaciosa associação entre a ‘Regra da Razão’ (padrão de análise antitruste desenvolvido pela Suprema Corte americana a partir do caso Standard 0il Co. v. United States) e ‘ilícitos por efeitos’ da legislação brasileira.

A tentativa de submeter o direito administrativo e econômico brasileiro à prática norte-americana não é um bom método. Esse erro de tradução entre duas realidades legislativa e jurisprudencialmente distintas muitas vezes é a pedra angular da tese segundo a qual a condenação de infrações à ordem econômica, no Brasil, dependeria da efetiva comprovação dos efeitos deletérios da conduta pela autoridade de defesa da concorrência”.

 

O posicionamento passou a ter conotações mais próximas do ideologismo, em que o “interesse popular” sobrepujaria o Direito, cuja hermenêutica deveria dissociar-se de seus cânones para pautar-se por aquele, “desonerando” a Administrador Pública do munus probatório, diante de pretensa “inevitabilidade de consequências deletérias de determinadas práticas”, cuja concretude se dispensou apurar.

No dizer do voto: “20. A presunção legal de irrazoabilidade funciona como um mecanismo de desoneração da Administração Pública em defesa dos direitos constitucionais da população, concretizando o mandamento de eficiência contido na Constituição Federal, artigo 37, na investigação e punição das infrações concorrenciais em razão da reconhecida – tanto histórica quanto jurisprudencialmente – inevitabilidade de consequências deletérias de determinadas práticas” (os grifos são do original).

Dispensada a necessidade de apuração da verdade real, a tese prontamente granjeou apoio dos órgãos investigadores do CADE, lotados na Superintendência-Geral, que desse modo assumiu de forma absoluta sua posição processual de órgão de acusação e não, como antes se arvorava, órgão de isenta investigação. O processo administrativo, destarte, abandona virtualmente a cláusula do due process of law para desenvolver-se em mero rito formal, em que a defesa tem pouca ou nenhuma relevância, sendo frequentemente ignorada, dela se fazendo tabula rasa. O decisum, assim, passou a ser frequentemente prolatado surdo aos argumentos da defesa.

Em texto repetido à saciedade em praticamente todas as Notas Técnicas relativas aos processos por cartel ou indução à conduta uniforme, e sem mais rebuço, assim passou a se manifestar em seu conteúdo, até à atualidade, a Superintendência-Geral do CADE, mutatis mutandis: “171. O resultado prático e útil desta classificação na aplicação da lei antitruste é evidente. Quando uma conduta for considerada anticompetitiva porque possui objeto ilícito, ou seja, sua mera existência a torna ilícita já que dela nunca decorreriam efeitos positivos concorrenciais, existe uma presunção de ilegalidade, aplicando-se aquilo que se convencionou chamar de regra per se. Neste caso, repise-se, a mera existência de uma conduta com determinado objeto é anticompetitiva, não sendo necessárias análises posteriores sobre efeitos ou sobre o mercado[24]” (grifou-se).

 

A consequência prática desse entendimento passou a ser a de que: “183. Nesse sentido, estando diante de um cartel normalmente basta a comprovação da existência do acordo para sua punição, dispensando a prova acerca da existência de prejuízos efetivos para fins de sua repressão. Assim, nos casos de cartel clássico, a prova da existência do acordo já seria suficiente para sua condenação. Entretanto, a comprovação da existência de outros elementos que caracterizem perenidade e institucionalidade (ainda que potenciais) torna a conduta mais grave, ensejando punição proporcional a esta gravidade. Novamente, dispensa-se, para a caracterização de um cartel como clássico, provas relativas a efeitos ou digressões sobre poder de mercado, bastando a comprovação da existência de elementos de perenidade e institucionalidade.

  1. Dessa forma, a utilidade em estabelecer as condições de existência de um cartel clássico, em outras palavras, comprovar se o acordo possui características que demonstrem sua perenidade (ao menos possível) e institucionalização (mecanismos de monitoramento do cumprimento dos objetivos acordados entre seus membros), está não em obter prova necessária para a condenação da conduta, para a qual basta a prova da existência do acordo colusivo, mas sim em determinar a gravidade da conduta e o quantum proporcional de punição”.

 

Sendo que à “comprovação da existência do acordo para sua punição” a praxis vem demonstrando bastar qualquer prova indireta, mesmo que não corroborada por outro elemento probatório, ou apenas questionavelmente amparada, muitas vezes provinda de documentos apócrifos ou de terceiros, eles próprios signatários de Acordos de Leniência ou de Termos de Compromisso de Cessação, cujo teor não é objeto de maior investigação ou contradita, se alguma. E pior, corroborados por Histórico de Conduta que sequer é a redução a termo do que se tenha auscultado dos depoimentos, mas o entendimento direcionado da autoridade que lhe subscreve, sem sequer e ao menos o placet, ainda que coarcto, do depoente.

 

O hermetismo dessa postura facilitadora do trabalho da autoridade investigadora, muito ao sabor do típico auto interesse da burocracia, mas potencialmente geradora de efeitos colaterais deletérios para a Sociedade que se pretende proteger e de distorções e anomalias de mercado

 

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[24] Excerto extraído da Nota Técnica Pública nº 23/2017/CGAA7/SGA2/SG/CADE, emitida no Processo Administrativo n.º 08012.002414/2009-92, de 8 de março de 2017, sendo Representante SDE, ex officio, e Representados Samsung SDI Co. Ltd. e outros.

 

 

(por vezes até de resultados anticompetitivos), comprovou não ser, contudo, imune a fissuras, quiçá de consciência jurídica.

Principalmente a partir de 2015, surgiram elas, seja no plano do direito aplicado, seja no conceitual.

Exemplo da primeira espécie se encontra no resgate mitigador das origens da introdução do conceito de infração “por objeto”, como se denota do voto da Conselheira Ana Frazão no Processo Administrativo n.º 08012.000261/2011-63, em que, embora entendendo que a adoção, por parte de entidade de classe, de tabela, ainda que sugestiva, de preços é conduta presuntivamente ilícita e prática infracional por objeto, bastando à sua configuração a divulgação dos preços, sendo desnecessário investigar seus efeitos, mesmo que potenciais, reconheceu tratar-se de presunção relativa e não de infração per se, permitindo-se o afastamento da ilicitude pelo apontamento de benefícios racionais e legítimos para o comportamento, ou seja, quando, diante das circunstâncias, a sugestão de preços possa ser utilizada para a realização de outro objeto lícito e razoável[25].

 

Passando do caso concreto para o campo conceitual, a mesma Conselheira Ana Frazão avançou, ainda que sutilmente, nos pressupostos jurídicos, ao reconhecer, nos Embargos de Declaração no Processo Administrativo n.º 08012.004736/2005-42, que o reconhecimento de uma infração à ordem econômica, embora independa da comprovação de efeitos da conduta anticompetitiva, exige a verificação da possibilidade concreta de sua produção[26]. A exigência da verificação de concretude é significativa, por seu efeito moderador do apetite condenatório abstrato.

A possível reversão de expectativas em relação ao dilema jurídico se tornou explicita no voto (aliás vencedor) do

 

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[25] Voto parcialmente vencido proferido no Processo Administrativo n.º 08012.000261/2011-63, de 3 de setembro de 2015, sendo Representante: SDE, ex officio, e Representados Brazilian Educational & Language Travel Association (Associação Brasileira de Organizações de Viagens Educacionais e Culturais – BELTA) e outros. Segundo o voto: “57. No processo administrativo mencionado acima, que pacificou a jurisprudência do Conselho, o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo ressaltou que, embora a divulgação de tabela de preços (por uma entidade de classe) constitua uma infração por objeto, não se trata de uma infração ´per se´, de modo que a ilicitude poderá ser afastada quando for possível demonstrar, diante das circunstâncias do caso, que a sugestão de preços pode ser utilizada para a realização de outro objeto lícito e razoável”.
[26] Voto nos Embargos de Declaração no Processo Administrativo n.º 08012.004736/2005-42, sendo Embargantes Raízen Combustíveis S.A. e Odon de Oliveira Mendes. Nele se lê: “Por fim, cabe lembrar aqui que a Lei 8.884/94, em seu art. 20, se satisfaz com a potencialidade lesiva para que o ato constitua uma infração à ordem econômica. Dito de outra maneira: não é requisito necessário que a conduta analisada venha a efetivamente produzir efeitos nocivos à concorrência, bastando a possibilidade concreta da produção desses efeitos.

 

 

Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior no Processo Administrativo n.º 08700.006965/2013-53[27], em que, entre a escolha pela adoção da regra per se ou da Razão, preferiu-se a última, não obstante tratar-se de caso de adoção de conduta uniforme.

 

É o que se lê deste importante Aresto: “4.1.1. Da Metodologia de Análise da Influência à Adoção de Conduta Uniforme no Presente Caso. 25. Considerando a possível divergência sobre a metodologia de análise da influência à adoção de conduta uniforme ou concertada sob a regra ´per se´ ou sob a regra da razão, adoto postura conservadora e opto pela segunda alternativa. 26. Caso seja analisada pela regra ´per se´, o próprio escopo da conduta seria suficiente para demonstrar o potencial de lesividade do ilícito. Por outro lado, se adotada a regra da razão, seria necessário aferir a existência de poder de mercado, bem como aferir se os efeitos líquidos da prática seriam favoráveis ou não à concorrência. Diante dessa possível dúvida, essa postura conservadora será adotada no caso concreto para averiguar se, mesmo com a consideração de eventuais eficiências da concertação, a prática poderia elevar o bem-estar e culminar na efetiva oferta de melhores condições ao consumidor final” (grifou-se).

Em 2016 nova evolução se verifica com o posicionamento inovador da Conselheira Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51[28], em voto proferido em  5 de dezembro de 2016, onde diferencia os cartéis clássicos (hard core) das colusões que denominou soft, em cujo conceito inclui as induções à conduta uniforme (art. 36, § 3º, inciso II, da Lei n.º 12.529/11),  e afirma que o conceito de infração per se, que para ela se confunde com o de infração “por objeto”, somente seria aplicável aos primeiros, sendo os demais de serem examinados à luz da Regra da Razão. Todavia, sendo este um detalhe de magna importância, não entendeu a Conselheira ser o hard core cartel uma infração per se clássica, posto que exigiu à sua tipificação, a presença do elemento subjetivo do injusto, em suas palavras, a premeditação e a intenção, ou seja, o dolus malus, como se verá abaixo.

 

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[27] Voto no Processo Administrativo n.º 08700.006965/2013-53, de 22 de abril de 2015, sendo. Representante Foto São José Digital e Representados o Sindicato dos Fotógrafos, Lojistas e Cinegrafistas do Estado do Piauí e Francisco das Chagas Machado Sobrinho. A decisão foi reiterada no Processo Administrativo n.º 08012.008847/2006-17, de 22 de maio de 2015, sendo Representante o Ministério Público do Estado do Espírito Santo e Representados Alex Oliveira Bourguignon e outros
[28] Voto no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51, sendo Representante a SEAE/MF e Representados Liquigás Distribuidora S/A (ex-Tropigas), Supergasbras (ex-Minasgás Distribuidora de Gás Combustível Ltda) e Paragás Distribuidora Ltda.

 

 

A diferença entre os dois conceitos (cartéis hard core e soft) é por ela explicada da seguinte forma[29]:

 

“81. Cartel é um ilícito administrativo e criminal. Ainda que previsto em lei, sua definição não está presente neste marco legal, mas na primeira parte da Resolução no 20/1999 do Cade. Vale, assim, começar por este ponto: Definição de cartel pela Resolução 20 de 09/06/99 do Cade: Cartéis são acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio. (…).

 

  1. Na tentativa de especificar mais detalhadamente a definição de cartel, pode-se dizer que cartel é uma ação coordenada (explícita ou tácita) entre concorrentes de um determinado mercado relevante, com a finalidade de forjar o lucro de monopólio, em que, para isso, seus membros precisam compartilhar algum tipo de estratégia, independentemente do tempo de duração, que, obviamente, é agravada por este. Ambas são premeditadas e intencionais” (os primeiros grifos são do original, a última frase foi negritada).

 

De fato, diz a Conselheira[30]:

 

84. O intuito deste ato ilícito (cartel hard core) é unicamente aumentar o lucro total do grupo de empresas pertencentes ao conluio, por meio da mimetização de uma situação de monopólio – que é o pior tipo de organização industrial que se pode observar sob o prisma do bem-estar social, em geral, e do bem-estar do consumidor, em particular –, havendo uma transferência de renda do consumidor para o produtor ou para ninguém. Dada uma situação inicial, então, os ganhadores com o conluio são apenas os membros do cartel, pois não se verifica qualquer eficiência econômica com o ato. Pelo contrário: há geração inequívoca de ineficiência social.

 

  1. O resultado que esse tipo de cartel gera, assim, é a supressão (total ou parcial) da concorrência, resultando em aumento do preço e/ou diminuição da quantidade, na transferência do excedente do consumidor para o produtor e na consequente criação do deadweight loss (DWL), que representam os consumidores que tiveram que sair deste mercado, porque o preço ficou muito acima do que eles poderiam/desejariam pagar. Essa, aliás, é a razão econômica para justificar que cartel tenha análise per se. Na verdade, esta é a única conduta anticompetitiva que, diante da literatura econômica, pode ser compreendida como per se. Não há qualquer outra conduta (discriminação de preço, fixação de preço de revenda, etc.), assim, que justifique uma análise per se. Somente cartel hard core se justifica” (grifou-se).

 

E complementa[31]:

 

 

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[29] Loc. cit.
[30] Loc. cit.
[31] Loc. cit.

 

 

 

95. Além dos cartéis hard core, há também os que poderiam ser chamados de cartéis soft (sendo o nome dado apenas para fazer o contraponto do hard). Estes, apesar de na prática serem chamados de cartel e, de fato, poderem resultar em graves danos para a sociedade, podem não ter uma definição precisa, como tem o cartel hard core. A Resolução no 20 não foi pensada para estes casos e, na minha humilde interpretação, nem o inciso I do artigo 21da Lei no 8.884/94 ou o inciso I, parágrafo 3o, do artigo 36 da Lei no 12.529/11, que, por isso, não deveriam ser usados para descrever um cartel soft. 96. Diferentemente do cartel hard core, esses cartéis soft podem ter diversas outras estratégias, muitas vezes não previstas na literatura econômica e que podem apresentar algum tipo de eficiência no ato ilícito, como, por exemplo, apresentar poder compensatório, um tipo de eficiência.

 

A motivação pode advir, por exemplo, do desejo de diminuir a assimetria de informação entre um grande número de ofertantes em um determinado mercado, o que foge ao ´espírito dos mercados concentrados, oligopolizados do hard core.

 

  1. Exemplos de soft cartel: (1) conduta para promover ou influenciar uma conduta de terceiros concertada entre concorrentes (inciso II, do parágrafo 3o do artigo 36); (2) conduta concertada entre concorrentes para enviar cartas de descredenciamento (ex: por hospitais a planos de saúde); (3) conduta concertada entre concorrentes para expulsar players do mercado via preço predatório conjunto; (4) conduta concertada entre concorrentes para contratar uma firma de consultoria (contabilidade, publicitária, jurídica, econômica, etc.) para fazer análises, com o objetivo de diminuir o custo de cada um dos concorrentes; etc.

 

  1. Se há possibilidade de eficiência, destarte, não há que se falar em condenação per se (ou por objeto), sendo sempre necessário balancear “os custos versus os benefícios” da conduta, para, assim, alcançar o efeito final. A análise nos casos de soft cartel deve ser feita pela regra da razão, portanto, porque, como dito, pode haver uma ação genuína e de boa-fé dos agentes envolvidos. No caso da ação de associações de classe ou de sindicatos, estas podem querer compensar um poder de mercado pré-existente, gerando, talvez, alguma eficiência. É preciso que o caso, assim, seja analisado pela regra da razão” (grifou-se).

 

Em conclusão, tem-se que, embora tenha a interpretação que levou à introdução dos conceitos de infração “por objeto” e “per se” cerca de um ano após a vigência da atual Lei de Regência, em 2013, a matéria está longe de ter sido pacificada no âmbito do Tribunal Administrativo do CADE, verificando-se tendência, ora por seu abrandamento, ora para sua rejeição, ainda que parcial. O fenômeno, de qualquer sorte, denota a ausência de robustez da leitura dita “inovadora”.

 

 

  1. O Direito Brasileiro

 

O sistema jurídico brasileiro inadmite os conceitos, seja do da infração “por objeto”, de origem europeia, seja da regra “per se”, provinda no Direito norte-americano, mesmo porque não só carentes de amparo na Lei Concorrencial vigente (e anteriores), como por serem claramente afrontosos aos que dispõe a Constituição Federal.

É o que se passa a demonstrar.

2.1. Condutas que tenham por objeto ou que possam produzir efeitos[32]  

O legislador estabeleceu no caput do art. 36 da Lei Concorrencial que podem constituir infrações à ordem econômica “os atos, ´sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados´”: (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços, (iii) aumentar arbitrariamente os lucros e (iv) exercer de forma abusiva posição dominante.

Embora a Lei Concorrencial não tenha feito qualquer dicotomia na definição de condutas e em seu tratamento, tendo sempre adotado a teoria dos efeitos, os quais precisavam ser demonstrados (por meio de análise econômica apoiada em correta – e complexa – investigação), entendeu o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo[33], em sua leitura do diploma vigente, que este a teria estabelecido, diferenciando entre: “(i) condutas que ´têm por objeto´ restringir a concorrência e (ii) condutas que, não tendo esse propósito, ´podem ter, ainda que apenas potencialmente, a capacidade de produzir tal restrição como efeito´”.

Para ele[34], as primeiras seriam anticompetitivas por seu próprio objeto e, assim, estariam revestidas de um manto de reprovabilidade presumida que não se amoldaria ao regime analítico

 

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[32] Vide mais sobre o tema na obra conjunta deste Autor com o Professor Vicente Bagnoli, intitulada “Direito Concorrencial”, tomo VII do “Tratado de Direito Empresarial”, obra publicada sob a coordenação do Prof. Modesto Carvalhosa, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, ed. 216, pp. 352/385.
[33] Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, fls. 4.
[34] Processo Administrativo n.º 08012.001271/2001-44.

 

 

da Regra da Razão[35], cabendo ao CADE, destarte, estabelecer “uma política de interpretação e ´enforcement´ (…) que seja, ao mesmo tempo, racional para a Administração, justa para o administrado (sic), e de bom senso (sic) em termos de incentivos para os agentes do mercado[36].

As condutas anticompetitivas “por objeto”, cujo conceito, como visto, foi extraído da legislação comunitária europeia, em linhas gerais, estabelece uma presunção iuris tantum de ilicitude e, desse modo, desagua na inversão do ônus probatório, passando este da acusação para a defesa. Sua extensão chega aos limites da infração “per se” do Direito norte-americano, em que se culmina com a presunção iuris et de iure, que dispensa a contextualização dos fatos, bastando à condenação, lastreada na responsabilidade objetiva, tão-somente a comprovação da materialidade da conduta e do nexo causal.

É verdade que a legislação concorrencial brasileira teve por progênie o Direito norte-americano e, mais recentemente, recebeu os eflúvios do Direito comunitário europeu.

Resta saber, todavia, até que ponto os conceitos emanados do Direito Comparado, de infrações “por objeto” ou “per se” podem ser acolhidos no sistema jurídico brasileiro, como pretendeu o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo e outros integrantes do Tribunal Administrativo do CADE que de sua lição hauriram doutrina, o que se ousa, concessa maxima venia.

Primeiramente, não se pode deixar de notar, que a ótica da legislação europeia, que dispensa a verificação dos efeitos para a prolação do decreto condenatório, não é pacífica nem mesmo no Velho Continente. Ao revés, nas sucessivas versões dos dois artigos que tratam de práticas anticompetitivas dos tratados de união, a necessidade de comprovação de efeitos parece ainda mais clara do que na versão brasileira (que supõe

 

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[35] A Regra da Razão (rule of reason), de origem norte-americana,  determinava que a aplicação da legislação antimonopólio (Lei Sherman) se daria apenas aos casos em que a restrição à concorrência não fosse razoável, do que decorreria a necessidade da análise individualizada das condutas, atenta a seus contornos e contexto, bem como aos efeitos que elas poderiam infligir ao mercado.
[36] Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, fls. 5.

 

 

comprovar seja a intenção – “que vise” do comando constitucional – de prejudicar a concorrência, seja o efeito, ainda que potencial – mas concreto, não apenas nefelibático, ou seja, verificado em simulações de acordo com adequada metodologia científica de análise).

De qualquer modo, porém, a resposta, como se verá, é negativa.

 

O Direito Concorrencial brasileiro, em seu atual formato, foi concebido em 15 de abril de 1948, quando o então deputado Agamemnon Magalhães apresentou Projeto de Lei ao Parlamento Nacional, buscando disciplinar a matéria[37]. Seu autor, porém, desde logo alertou que, embora o Projeto tivesse se inspirado no Direito estadunidense, havia a imperiosa necessidade de adaptá-lo ao sistema jurídico brasileiro[38], não se admitindo o mero transplante reverencial.

 

Ora, não obstante a evolução do Direito Constitucional brasileiro, desde a Lei Maior de 1946 até a atual, de 1988, alguns princípios e garantias permaneceram intocados, dentre os quais o da presunção da inocência dos acusados (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal[39]), que abjura a inversão do ônus da prova para que este recaia sobre o acusado.

 

Não é desconhecido, porém, que a cultura nacional, de inspiração burocrática, sempre esteve inoculada pelo germe do intervencionismo estatal no setor econômico, o qual se viu consagrado em diversas oportunidades em Cartas constitucionais de inspiração ditatorial, como as de 1934 e 1967. No plano concorrencial, essa vertente política saudosista, sob uma distorcida escusa da proteção social buscada pela Constituição de 1988, desaguou na Escola de Minas, berço do Direito Econômico.

 

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[37] Projeto n.º 122/48, in DCN de 16 de abril de 1948.
[38] Cf. Magalhães, Agamemnon, “Abuso do Poder Econômico”, ed. Folha da Manhã, Recife, 1949, pág. 18, onde relata conferência pronunciada no Clube Militar do Rio de Janeiro, aos 22 de junho de 1949, quando afirmou que o Projeto seguira “as diretrizes da legislação dos EUA (mas) com as modificações impostas pelas nossas condições econômicas e políticas”.
[39] Art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

 

 

Manifestação exponencial dessa Escola pode ser vista na lição da emérita Professora Isabel Vaz, da Universidade Federal de Minas Gerais, que assim explana: “Assim como é preciso repensar o conceito de desenvolvimento, impõe-se uma análise crítica do regime da concorrência no Brasil. Defende-se a opinião segundo a qual a concorrência empresarial ´não é um valor-fim, mas um valor-meio´ classificada como instituto jurídico filiado às normas do Direito econômico. E nesta condição, adquire a natureza de instrumento de realização de uma política econômica, cujo escopo principal não é simplesmente reprimir práticas econômicas abusivas e sim estimular todos os agentes econômicos a participarem do esforço de desenvolvimento, tal como descrito por Perroux[40]” (grifou-se).

 

Em outras palavras, deixaria o Direito da Concorrência de ser veículo da dinâmica do livre do mercado, executado por um órgão de Estado, garantidor da livre iniciativa, fundamento da República (art. 1º, inciso IV, da Constituição Federal), para transmutar-se em instrumento realizador de Políticas Econômicas, a ser implementadas, por definição, por um órgão de Governo a gerir a atuação dos agentes econômicos que, antes inspirados na autonomia da vontade, rebaixar-se-iam à condição de hipossuficientes econômicos, submetidos à tutela do Estado regulador.

 

A interpretação das normas, sob essa égide, passou, deste modo, a inspirar-se na facilitação da ação governamental, ainda que em detrimento dos direitos e garantias individuais do cidadão. As normas jurídicas abandonaram os auspícios da sistemática jurídica para dar preferência a visões ad hoc, em geral, de regulação da atividade econômica pelo Estado.

 

Acolheu-se assim, com facilidade, o conceito europeu de infrações “por objeto”, ou mesmo o norte-americano de delitos “per se”, na medida em que estes dispensavam qualquer efetiva busca da verdade

 

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[40] Vaz, Isabel, “Direito Econômico da Concorrência”, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1993, pp. 9/10.

 

 

real pela investigação dos fatos, seu contexto e seus efeitos. Era mais fácil saciar-se com a verdade punitiva à outrance.

 

O Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, ao trilhar a nova senda, faça-se justiça, não estava desatento aos limites antevistos no Tratado Comunitário Europeu.

 

Este estabelece que: “são incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: (a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção, (b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos, (c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento, (d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse fato, em desvantagem na concorrência e (e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos[41].

 

Tais acordos ou decisões, por serem contrários aos propósitos comunitários seriam, portanto, nulos[42].

 

O Tratado, porém, anteviu válvulas de escape, permitindo, assim, justificativas econômicas para que se pudesse reconhecer como lídimas condutas prima facie anticompetitivas.

 

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[41] Cf. http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/pm/Tratados/Lisboa/tratados-TUE-TFUE-V-Lisboa.html. Acessado em 5 de junho de 2017.
[42] Tratado, art. 101, item 2: “São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo”.

 

 

Assim dispôs[43]: “As disposições no n.º 1 podem todavia ser declaradas inaplicáveis: a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou econômico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: (a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos e (b) nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa”.

 

No Brasil tal válvula foi recepcionada no § 5º do art. 88 da Lei n.º 12.529/11 quando, embora sob elã autoritário, ao disciplinar o controle preventivo de atos de concentração, reza que:  “Serão proibidos (sic) os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6º deste artigo” que assim estabelece: “os atos a que se refere o § 5º deste artigo poderão ser autorizados (sic), desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos: (I) cumulada ou alternativamente: (a) aumentar a produtividade ou a competitividade, (b) melhorar a qualidade de bens ou serviços ou (c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico e  II – sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes”.

 

Fiel ao espírito do Tratado europeu, porém, o Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo[44] entendeu, neste ponto corretamente, dispensar a rigidez formal da lei nacional que fixou a “defesa baseada em eficiências” na seara do controle de atos de concentração para ampliar seus efeitos para a análise repressiva de condutas anticompetitivas.

 

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[43] Tratado, art. 101, item 3.
[44] Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, fls. 16.

 

 

Mas inovou o Conselheiro ao classificar as infrações à ordem econômica, com consequências perigosas, em duas categorias, a saber: (a) condutas por objeto e (b) condutas por efeito anticompetitivo. A partir desse momento, essa passou a ser a jurisprudência prevalecente e a influência europeia também despontou como fonte exegética da lei concorrencial brasileira.

Até então, como já se viu acima, o Conselho se servia indistintamente da Regra da Razão, assim analisando a cada caso os efeitos (ainda que não alcançados) da conduta anticompetitiva, mesmo em casos de cartéis hard core.

Cumpre neste ponto apurar se a novel hermenêutica encontra respaldo no sistema jurídico nacional e, principalmente, no disposto na Constituição Federal. Em parte, apenas, ver-se-á, a resposta é positiva.

A visão europeia encontra-se descrita nas “Orientações relativas à aplicação do n° 3 do artigo 81° do Tratado[45], a saber:

21. As restrições de concorrência por objectivo são aquelas que, pela sua natureza, podem restringir a concorrência. Trata-se de restrições que, à luz dos objectivos prosseguidos pelas regras comunitárias da concorrência, têm um elevado potencial em termos de efeitos negativos na concorrência e relativamente às quais não é necessário, para efeitos da aplicação do n.º 1 do artigo 81º, demonstrar os seus efeitos concretos no mercado. Esta presunção baseia-se na natureza grave da restrição e na experiência que demonstra ser provável que as restrições da concorrência por objectivo tenham efeitos negativos no mercado e contrariem os objectivos das regras comunitárias da concorrência. As restrições por objectivo, como a fixação dos preços e a partilha do mercado, reduzem a produção e aumentam os preços, provocando uma deficiente afectação de recursos, na medida em que os bens e serviços procurados pelos consumidores não são produzidos. São igualmente prejudiciais para o bem-estar dos consumidores, dado que os obrigam a pagar

 

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[45] Atual art. 101, publicada no Jornal Oficial n.º C 101 de 27/04/2004, pág. 0097 – 0118

 

 

preços mais elevados pelos bens e serviços em causa”.

O texto, porém, faz uma importante ressalva ao estabelecer que tais restrições “podem restringir a concorrência”, embora demonstrem ter “um elevado potencial em termos de efeitos negativos” (grifou-se).

 

Não há, portanto, dispensa da análise de efeitos, consagrando-se assim uma presunção iuris tantum, aspecto esse inteiramente acolhido pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo ao dizer que “a presunção de ilicitude que acompanha as condutas anticompetitivas pelo objeto é baseada na experiência, no conteúdo do acordo e na sua alta probabilidade de prejudicar o bem coletivo protegido pela lei. Contudo, trata-se apenas de uma presunção iuris tantum, e não significa que se esteja adotando uma ficção absolutamente descolada da realidade, nem uma presunção irrefutável. Ao contrário, os elementos da realidade colaboram, por um lado, para o próprio julgamento de que dado acordo é ilícito pelo objeto. Por outro lado, a punição da conduta não independe, completamente, de uma análise concreta de seus efeitos, ainda que esta seja feita, neste caso, a posteriori. O ponto, aqui, é apenas perceber que essa análise de efeitos não é necessária para que se presuma, em princípio, a ilicitude” (grifou-se).

 

Dissociou-se, porém, a norma comunitária do Direito brasileiro no momento em que admitiu o reconhecimento do caráter infracional da conduta com dispensa da demonstração dos “seus efeitos concretos no mercado”.

Mas, como visto, mesmo ao fazê-lo (no que foi acompanhada pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo), não tratou as condutas anticompetitivas “por objeto” como sendo “per se” infracionais, admitindo a apresentação, pelo acusado, de excludentes da ilicitude baseadas em eficiências.

De fato, assim dispõe o documento[46]: “(…) o n.º 3 do artigo 81º não estabelece qualquer distinção entre acordos que têm por objectivo restringir a concorrência e acordos que têm por efeito restringir a concorrência. O n.º 3 do artigo 81º é aplicável a todos os acordos que satisfaçam

 

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[46] Parágrafo 20.

 

 

as quatro condições nele previstas”.

Ao assim estabelecer, contudo, o direito europeu admitiu a inversão do ônus da prova em matéria repressiva, fonte em que se abeberou o Conselheiro Marcos Paulo ao dizer que: “a presunção dispensa, em outras palavras, que a autoridade administrativa se desencarregue da prova dos efeitos para determinação da ilicitude, e transfere para o próprio Representado o ônus de provar que a restrição à concorrência é acessória em relação a outro objetivo distinto e lícito, e que os potenciais benefícios advindos da persecução desse objetivo principal superam os riscos detectadas à concorrência[47].

Ora, tal entendimento é francamente inconstitucional, dada a inafastável prevalência do princípio da presunção da inocência (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal), considerando-se a natureza repressiva, ou, mais precisamente, penal-econômica, do Direito Concorrencial brasileiro.

Tal como a responsabilidade objetiva, a inversão do ônus da prova encontra guarida no Direito Civil, dada sua natureza meramente reparatória, o que à obviedade não se coaduna com o feitio punitivo do Direito concorrencial, que não anela a reparação ou indenização, mas a prevenção e a sanção.

A inversão do ônus da prova, tal qual a solidariedade, não se presume. Exige autorização legislativa expressa, sendo que esta não existe na Lei n.º 12.529/11.

E mais: simples interpretação da norma não suplanta texto expresso nela contido. Ora, reza o art. 115 da Lei Concorrencial que, no que for esta omissa, aplicam-se-lhe o que dispuser o Código de Processo Civil, sendo que este reza (art. 373): “o ônus da prova incumbe: (i) ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito e (ii) ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.

 

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[47] Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, fls. 16.

 

 

A inversão do ônus da prova é circunstância excepcional e não a regra, admissível apenas “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo (…) ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário”, situação esta em que “poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso”, porém, dada seu caráter extraordinário, “desde que o faça por decisão fundamentada” (art. 373, § 3º).

Certamente o mero mandrionismo da autoridade que dolentemente se escusa da função investigativa, sob alegação de eventual dificuldade (aliás em geral não comprovada pela experiência empírica) na obtenção da prova, não representa fundamento bastante a tão drástica medida, cujo resultado é coarctar a amplitude dos princípios da presunção da inocência, em matéria repressiva e da ampla defesa.

Considerando-se, outrossim, a natureza penal-econômica do Direito Concorrencial, a co-aplicação subsidiária do Código de Processo Penal é-lhe inerente e natural. Assim, no tocante ao ônus da prova, estabelece o art. 156 deste: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer (…)”.

 

Desse modo, não se pode olvidar que o órgão investigador do CADE, a Superintendência-Geral, exerce as funções de acusador na relação processual tripartite. Não pode ela, portanto, pretender a inversão do ônus da prova, senão por convenção com o Representado. Mesmo assim, tal acordo será nulo quando: (i) recair sobre direito indisponível da parte ou (ii) tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito (art. 373, § 3º)[48].

Ora, a inversão do ônus da prova em Processos Administrativos resulta, em grande número de casos, na atribuição ao Representado de produção de prova negativa ou diabólica, dado que a este

 

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[48] Art. 373, § 3º, do CPC: “a distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I – recair sobre direito indisponível da parte, II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

 

 

cumpriria não comprovar que foi o responsável pela prática ilícita, mas, antes, que não a praticou, ou que é cediço ser em geral impossível ou situação de extrema dificuldade.  Não passa, portanto, concessa venia, de bernarda jurídica, motivada pela indolência da lei do menor esforço que afla o arbítrio da autoridade. Ademais, a presunção constitucional de inocência é direito indisponível do acusado, na forma exposta pelo Codice processual civil pátrio.

Outrossim, a exemplo do Direito do Consumidor[49], a inversão encontra fundamento na defesa do indefeso ou do hipossuficiente, figuras claramente não localizáveis no Direito Concorrencial. Disso decorre que a nova interpretação pretende transformar em hipossuficientes os agentes econômicos, com o claro objetivo de regular a atividade econômica pelo Estado, afrontando assim às escâncaras o princípio pétreo da livre iniciativa, fundamento da República (art. 1º, inciso IV, da Carta Política).

Nenhum agente econômico, vítima da infração à ordem econômica, até mesmo pela natureza de sua atividade, pode ser considerado hipossuficiente, e a todo aquele que se vê acusado de prática de conduta anticompetitiva tem o direito à defesa, direito este que se confronta com o ônus da acusação, de comprovar a conduta típica, antijurídica e punível, para além da materialidade da infração e do nexo causal.

Não se pode afirmar, com inspiração na busca da verdade meramente punitiva que se socorre de instrumentos de facilitação da acusação, que as infrações à ordem econômica sejam delitos formais, mesmo porque os tipos descritos no art. 36 da Lei Concorrencial são extremamente plásticos, como aliás não poderiam deixar de ser, dada a impossibilidade de se catalogar todas as condutas empresariais que possam ser ofensivas à ordem econômica.

É certo que o art. 36 pode induzir ao

 

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[49] Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei n.º 8.078 de 11 de Setembro de 1990, art. 6º: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

 

 

entendimento de se tratar de infração formal, ao afirmar que “constituem infração da ordem econômica (…) os atos (…) que tenham por objeto ou possam produzir efeitos, ainda que não alcançados” arrolados nos incisos I a IV do preceptivo.

Não se confunda a expressão final como dispensa de produção de efeitos, mas sim como a admissibilidade da tentativa, dado que complementar às palavras “possam produzir efeitos”, sob pena inclusiva, de ser pleonástica. Mas, mesmo a ausência do resultado lesivo exige concretude da potencialidade danosa (a conduta precisa poder produzir efeito), mesmo porque entendimento em contrário chegaria ao extremo até mesmo de se punir a infração impossível.

Quando o legislador se refere a efeito potencial, supõe ele que o aplicador da norma faça adequada análise, por meio de simulações ou outra metodologia cabível, para verificar a efetiva potencialidade do dano, o que, aliás, já é postura consagrada em análises ex ante de atos de concentração.

A simples leitura dos tipos infracionais contemplados no art. 36 da Lei de Regência é suficiente para que se compreenda sua natureza chamada anormal, ou seja, o tipo (a exemplo da figura do estelionato, descrito no art. 171 do Código Penal[50] que se socorre da Sociologia na busca da compreensão do conceito, por exemplo, de “fraude”) se socorre de outra ciência, no caso a Ciência Econômica, para sua integração.

Fala-se, ainda, que a inversão do ônus da prova, tal qual a responsabilidade objetiva, teria por guarida os princípios da prevenção ou da precaução, diante da gravidade da infração à ordem econômica para a Sociedade, titular do interesse jurídico (art. 1º, parágrafo único, da Lei Concorrencial[51].

Mais uma vez, trata-se de mera desculpa para se justificar a intervenção a fórceps de conceitos estranhos ao Direito Concorrencial, extraído, agora do Direito Ambiental (vorsorge prinzip), mas que tem por fonte circunstâncias científicas incertas ou potencialmente inseguras,

 

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[50] Art. 171 do Código Penal: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
[51] Art. 1º, parágrafo único, da Lei Concorrencial: “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

 

 

cujo risco ambiental se procura minimizar[52]. Nada correlacionado ao Direito Concorrencial, portanto.

O que se vê, desse modo, é que os que propugnam pela introdução de tais “facilidades” ao magistério punitivo, sem qualquer amparo axiológico senão o de punir por punir, com pretensos propósitos “educativos”, mesmo que às custas de inocentes, em verdade querem transformar o Direito da Concorrência em verdadeiro quasar jurídico, buraco negro que utilitariamente absorve, ad hoc, tudo o que favorecer a acusação.

 

Mas o que diz a Lei?

 

O tratamento jurídico da matéria, como não poderia deixar de ser, começa pela leitura da Constituição Federal, cujo art. 170, inciso IV[53], estabelece como princípio da ordem econômica e financeira, dentre outros, a livre concorrência, mas não como valor em si, a ser protegido, mas sim instrumental de outro maior, o da livre iniciativa. Este sim, por sua superioridade,

 

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[52] De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (http://www.mma.govs.br/biodiversidade/biosseguranca/item/7512-princ%C3%ADpio-da-precau%C3%A7%C3%A3o, acessado em 3 de junho de 2015), a interpretação do Princípio da Precaução foi feita durante a Bergen Conference realizada em 1990 nos Estados Unidos, tendo sido proposto na Conferência no Rio de Janeiro, em junho de 1992, como Princípio 15 da Declaração do Rio/92 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, sob a seguinte redação: “Para que o ambiente seja protegido, serão aplicadas pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis, não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes, em termos de custo, para evitar a degradação ambiental“. Segundo o MMA, esse princípio consta também em outros acordos internacionais, por exemplo, a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, como sendo um princípio ético e implica que, a responsabilidade pelas futuras gerações e pelo meio ambiente, deve ser combinada com as necessidades antropocêntricas do presente. No Preâmbulo da CDB lê-se o seguinte: “observando também que, quando exista uma ameaça de redução ou perda substancial da diversidade biológica, não deve ser invocada a falta de completa certeza científica como razão para adiar a tomada de medidas destinadas a evitar ou minimizar essa ameaça“.
[53] Art. 170, inciso IV, da Constituição Federal: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) – IV- livre concorrência”.

 

disciplina a hermenêutica, portanto pro negotio, do Direito Concorrencial, atenta ao pressuposto clássico de que odiosa restringenda.

Mas, prossegue a Carta Política estabelecendo no art. 173, § 4º, que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (grifou-se).

A expressão “que vise” claramente exige a presença do elemento volitivo, malsão, à tipificação da conduta ilícita e baliza a disciplina infraconstitucional que, por óbvio, não pode contrariar o comando da Lei Maior, nem seu espírito. Não por outro motivo reconheceu a Conselheira Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51[54], que a figura clássica do cartel, em suas modalidades hard core, descreveriam condutas “premeditadas e intencionais”.

 

Embora o texto legislativo, quando arrola as condutas puníveis, não tenha se alterado significativamente desde a Lei n.º 8.158, de 8 de janeiro de 1991, passando pela Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994, e alcançando a atual Lei Concorrencial, os defensores da nova interpretação afirmam que o texto vigente teria inovado, sob os eflúvios do Direito Comunitário europeu, validando a novel postura.

É de se ver, assim, o que diz o art. 36 da Lei n.º 12.529/11, que reza “constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos”, conforme descritos nos incisos I a IV que se seguem. Veem, assim, nas expressões “por objeto” e “que possam produzir os seguintes efeitos”, a justificativa para a adoção dos conceitos de infrações “por objeto” em contraposição àquelas “por efeitos”.

A leitura, porém, é ágrafa, posto que, em realidade, extraída não do texto da Lei, mas da conjectura cerebrina condenatória por antecipação.

De fato, a norma infraconstitucional somente poderia haurir seus fundamentos na Carta Constitucional, que em momento algum justifica tal leitura. Resta translúcido, em verdade que a Lei Concorrencial apenas transcreveu, com outras palavras, o quanto dispôs o texto maior, quando este estipulou que seria infracional tão-somente a conduta “que vise” um dos resultados anticompetitivos que descreve.

 

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[54] Voto no Processo Administrativo n.º 08012.002568/2005-51, sendo Representante a SEAE/MF e Representados Liquigás Distribuidora S/A (ex-Tropigas), Supergasbras (ex-Minasgás Distribuidora de Gás Combustível Ltda) e Paragás Distribuidora Ltda.

 

 

Ou seja, é óbvia a equivalência entre o “que vise” constitucional, com o “por objeto” da Lei Concorrencial, eis que, qualquer acordo que tenha “por objeto” algo assim o é porque as partes assim o “visaram”, o “buscaram, o “almejaram”. Tanto o “que vise”, como o “por objeto” apenas refletem o mesmo dolus malus, a premeditação.

É certo que a Lei se refere igualmente aos atos que “possam produzir” os efeitos anticompetitivos que lista. A leitura sistemática do arcabouço legal, porém, claramente esclarece que, antes de negar a exigência da intenção, a confirma, com a figura do dolo eventual, ou seja, aquela conduta cujo agente tenha aceito, conscientemente, o risco de produzir o resultado danoso.

Nas palavras do Conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no Processo Administrativo n.º 08012.006241/97-03[55]:

Quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas, deve-se reforçar alguns comentários sobre a estrutura do art. 21 da Lei 8.884/94 (correspondente ao art. 36, § 3º, da Lei vigente). Tal artigo tem uma estrutura dual, qual seja, para se configurar uma prática anticompetitiva típica ou se prova a intenção (dolo) do agente em cometer um ato ilícito ou se prova a existência de probabilidade efeitos. Como vimos, há diversas evidências sobre o dolo específico de várias pessoas físicas que buscavam impedir que outras farmácias adotassem um preço mais baixo ao consumidor. Assim, pela prova desta vontade, e pelo fato desta conduta não ser impossível de ser praticada, entende-se que houve configuração do ilícito” (grifou-se).

Assim, por exemplo, a contextualização de fatos pode não apenas isentar a infração impossível, dada a ineficácia absoluta do meio ou a irretorquível impropriedade do objeto, mas também aquela em que a visão dolosa esteja ausente ou em que não haja efeitos nocivos a serem punidos. Destarte, tem-se que o primeiro requisito à configuração do cartel é a comprovação de que os atores estão em condições de agir de forma a que suas condutas produzam ou possam concretamente produzir efeitos anticompetitivos, ou seja, de que sejam eles titulares do poder econômico, que usufruam de

 

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[55] Processo Administrativo n.º 08012.006241/97-03, julgado em 7 de outubro de 2009, sendo Representante Francisco Vicente PÁG. Catunda e Representados Associação de Drogarias do Brasil – Rede da Economia e outros.

 

 

posição dominante[56], sem o qual deste não poderiam abusar.

É hipótese, portanto, excludente da reprovabilidade, o conluio de pequenos atores que buscam, pela redução de assimetrias de informação ou pela cooperação, a obtenção de poder compensatório[57] que lhes permita manter a concorrência no mercado em face a agentes de poder incontrastável. Mesmo porque, a configuração do cartel, como de qualquer conduta infracional, anticompetitiva, exige que os agentes econômicos sejam titulares de posição dominante, sendo para tal determinação necessária a definição prévia do mercado relevante[58].

 

Aliás a respeito deste tema, o Conselheiro Paulo Furquim[59] explica que “a coordenação de pessoas jurídicas ou físicas com o objetivo de uniformização de conduta comercial – uma ação coletiva – pode, em algumas circunstâncias, ser de interesse da sociedade e, portanto, deve ser permitida ou mesmo incentivada pela política de defesa da

 

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[56] Cf. o voto do Conselheiro Alessandro Octaviani Luís na Averiguação Preliminar no 08700.002499/2007-99, de 7 de novembro de 2012, sendo Representante a Associação das Oficinas de Reparação de Veículos Automotores de Mato Grosso do Sul — ASSORAUTO/MS e Representadas a União das Auto-Peças e outra.
[57] Cf. votos da Conselheira Ana Frazão nos Processos Administrativos n.ºs 08012.003048/2003-01, julgado em 1º de outubro de 2014, sendo Representante Hapvida Assistência Médica e Representados o Sindicato dos Médicos do Estado do Ceará e outros, 08012.008477/2004-48, sendo Representante o Ministério Público do Estado de Santa Catarina e Representado o Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina, julgado em 6 de agosto de 2014, 08012.00783/2006-78, sendo Representante o Ministério Público Federal – Procuradoria Federal em Rondônia e Representados o Conselho Regional de Medicina do Estado de Rondônia – CREMERO e outra, julgado em15 de outubro de 2014,  08012.005374/2002-64, sendo Representante o Comitê de Integração de Entidades Fechadas de Assistência à Saúde – CIEFAS e Representados a Associação Médica da Paraíba e outros e 08012.005135/2005-57, sendo Representante o CADE, ex officio, e Representados a Associação Médica do Rio GrandDe do Norte – AMRN e outros.
[58]  Cf. a respeito o Voto vogal da Conselheira Ana Frazão no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, ocasião em que, embora aceitando o conceito de condutas “por objeto”, contrapondo-as àquelas “por efeito”, reconheceu que os atos que em razão dos seus efeitos possam prejudicar a livre concorrência se referem a um perigo abstrato, assim demandando do julgador um juízo mais atento, zeloso dos critérios da análise concorrencial, como mercado relevante e posição dominante. Não deixou de observar, mais, que, mesmo nos casos de perigo concreto, é de se admitir a prova contrária à presumida potencialidade lesiva, ou seja, a prova dos efeitos da conduta inquinada.
[59] Azevedo, Paulo Furquim de, “Poder compensatório na concorrencial”, CADE Informa n.º 2, 2007, pág. 1. In http://cade.govs.br/news/n002/artigo.htm.

 

 

concorrência”.

E ressalta[60]: “a conduta uniforme na comercialização é admissível em condições restritivas: a) existência de forte assimetria de negociação ex ante e em desfavor daqueles que buscam se coordenar; b) mudança do padrão de negociação decorrente da coordenação horizontal, de descentralizada para uma barganha bilateral; e c) que aquilo que seria um ‘poder compensatório’ não inverta a relação de assimetria que é o pressuposto para a sua tolerância”.

Mesmo em caso de agentes que disponham de poder econômico e que gozem de posição dominante, hipóteses há, à míngua do elemento volitivo, de prejudicar o mercado e o consumidor nacionais, de cartéis lícitos, como é o caso do chamado cartel de exportação, que apenas produzam efeitos fora do território nacional. Neste caso, veda-se a atividade punitiva do CADE, dada a carência jurisdicional, limitada pelo princípio da territorialidade, posto que apenas as práticas cometidas no território pátrio, ou que nele produzam ou possam produzir efeitos, estão submetidos à autoridade do Conselho (art. 2º da Lei Concorrencial)[61].

E, como visto, a descoberta da competência e jurisdição do CADE para investigar e reprimir infrações à ordem econômica, ocorridas no exterior, principia pela demonstração da existência de efeitos no território nacional, o que seria incompatível com a aceitação de infrações “por objeto”, que dispensa essa análise.

Assim, tem-se que, em tema de cartéis internacionais, a admissibilidade da tese da infração “por objeto” ou “per se”, na medida em que propugna pela desnecessidade de análise de efeitos da conduta anticompetitiva para fins de condenação dos envolvidos, resultaria na absolvição in limine de todas as empresas integrantes de um cartel comprovadamente existente no exterior, uma vez que não haveria perquirição sobre os efeitos do

 

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[60] Azevedo, Paulo Furquim de, “Poder compensatório na concorrencial”, CADE Informa n.º 2, 2007, pág. 1. In http://cade.govs.br/news/n002/artigo.htm.

[61] Art. 2º: “aplica-se esta Lei, sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos”.

 

 

conluio, em território nacional. A inconsistência da tese em voga, como se denota, é diáfana.

Com efeito, à luz das normas de ultraterritorialidade da legislação nacional (art. 2º da Lei n.º 12.529/11) a aplicação da Lei Concorrencial brasileira e a competência do CADE para investigar e punir condutas anticompetitivas, exigem que se demonstre que tais práticas sejam “cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos”.

Ora, não demonstrados os efeitos da prática colusiva internacional no Brasil, mesmo que existentes, estariam os infratores imunes à função punitiva do CADE. A aceitação da tese da infração “por objeto” ou “per se” como integrante do sistema jurídico nacional resultaria em verdadeira petição de princípio ou, no mínimo, em contradictio in terminis.

Diz-se mais, que a análise do objeto da conduta dispensa comprovação de efeitos anticompetitivos, na medida em que estes podem ser presumidos tão só pela “experiência da autoridade concorrencial”. A disparatada tese, quando se trate de direito punitivo, indebitamente transposta ao Direito do Consumidor[62], muito se aproxima do Direito Penal da Vontade, do modelo nacional-socialista, em que se admitia a punição pelo fato de a autoridade “acreditar”, por sua experiência, que o cidadão suspeito “poderia estar” a “pensar” de forma contrária aos ideais da ideologia nazista, antecipando, assim, preventivamente, a punição alegadamente em prol dos interesses maiores da sociedade.

A resposta a esse posicionamento juridicamente abstruso foi dada pelo Poder Judiciário, onde o Administrado encontra sua última e mais poderosa trincheira. De fato, é inquebrantável o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da

 

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[62] O julgamento com base na experiência da autoridade objetiva a defesa do hipossuficiente, nos termos do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei n.º 8.078 de 11 de setembro de 1990:Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

 

 

Constituição Federal[63]), baluarte das instituições, verdadeiro aríete a ser arremetido sempre que se lhe opuser a turris eburnea do arbítrio administrativo, crisol decantador que é da moralidade da persecução penal-econômica, não só em termos exógenos, de revisão da forma e externalidades de suas decisões, mas também endógenos, perquirindo o mérito da causa[64].

No caso, ficou claro como o Judiciário repudiou tal entendimento que, em seu extremo, resultaria na negativa de Justiça, quando do julgamento[65] do chamado “Cartel dos Genéricos”[66], em que os Representados, laboratórios farmacêuticos, foram condenados por simples presunção, baseada em máximas de experiência.

Tem-se, portanto, que a experiência da autoridade, na melhor das hipóteses, permite não mais que a instauração do processo, e mesmo assim diante de indícios mínimos de infração, mas em

 

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[63] Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

[64] Não há confundir o conceito de “mérito da causa” com o de “mérito administrativo”, baseado na visão dual da oportunidade e da conveniência, eis que nenhuma decisão condenatória do CADE, em seu dispositivo, pode ser exarada ao sabor da discricionariedade administrativa.

[65] Cf. sentença do Juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara da Justiça Federal no Distrito Federal, no Processo n.ºs 2007.34.00.043978-7 e outros, que culminaram por ser unificados, de 9 de dezembro de 20111, onde declarou o decisum administrativo nulo por entender não haver provas suficientes à condenação dos acusados. Referida sentença foi confirmada pela 6ª. Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em 30 de março de 2015, sendo Relator o Des. Federal Kassio Nunes Marques, que, no mérito afirmou ser “indevida a condenação imposta pelo CADE, seja pela ausência de evidências da formação do ´acordo´ para dificultar o ingresso de medicamentos genéricos no mercado nacional, seja pela falta de identificação de condutas das condenadas que permitissem a tipificação e gradação da penalidade” (enfatizou-se).

[66] Processo Administrativo n.º 08012.009088/1999-48, sendo Representante o Conselho Regional de Farmácias do Distrito Federal – CRF/DF e Representados Abbott Laboratórios do Brasil Ltda. e outros, sob a Relatoria do Conselheiro Ricardo Villas Bôas Cueva, vencido, sendo redator do Acórdão de liderança o Conselheiro Luiz Fernando Rigato Vasconcellos, julgado em 13 de outubro de 2005. Neste caso os Representados foram condenados pelo CADE que reconheceu ter havido “potencialidade lesiva”, na medida em que não deixou de registrar que da prática não havia resultado qualquer efeito danoso ao mercado.

 

 

hipótese alguma a condenação.

De qualquer modo, não há como se evitar a conclusão de que o conceito de infração “por objeto” (ou pior, per se) não encontra apoio na Lei Concorrencial.

As infrações à ordem econômica são apenas quatro, ou seja, as listadas nos incisos I a IV do art. 36 da Lei n.º 12.529/11, a saber: “I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III- aumentar arbitrariamente os lucros e IV – exercer de forma abusiva posição dominante”. Nesse ror, como se viu, não se encontra a figura do cartel.

Estas, por assim dizer, caracterizam as infrações-fim, ou seja, aquelas que “tenham por objeto” ou que possam “produzir (esses) efeitos”. Os meios, ou infrações-meio, em numerus apertus, encontram-se didaticamente listados no § 3º do mesmo artigo, dentre os quais se destacam os previstos nos incisos I e II, a saber: “I – acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; b) a produção ou comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenções em licitação pública; II – promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes”.

Em termos menos prolixos, trata-se (a) do cartel hard core e (b) da indução a conduta uniforme. São meios, portanto, e configuram infração à ordem econômica apenas “na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo (art. 36) e seus incisos”. Em outras palavras, cujos efeitos sejam as infrações-fim. À condenação de um agente econômico, é, portanto, necessária a comprovação destes.

Fossem o cartel ou a indução à conduta uniforme infrações, estariam elas arroladas dentre os incisos do caput do art. 36 e não em meio às condutas exemplificativas dos incisos do § 3º do mesmo artigo (mais precisamente, os incisos I e II). Tal não ocorre, por opção explícita do legislador e da mens legis.

Em resumo:

  1. a) a adoção do conceito de infração “por objeto” (quanto mais a de delito “per se”) não encontra guarida no sistema jurídico brasileiro, resultando em importação de conceitos forâneos, adventícios do Direito Comunitário Europeu, incompatíveis com as normas e princípios constitucionais brasileiros;
  2. b) tal conceito não se vê espelhado na Lei Concorrencial (Lei n.º 12.529/11), que define o cartel e a indução à conduta uniforme como meios que podem levar ao reconhecimento da conduta infracional, mas desde que seus efeitos sejam demonstrados e se amoldem a pelo menos um dos tipos descritos entre os incisos I a IV do art. 36 do diploma de regência;
  3. c) o sistema jurídico brasileiro não dá quartel à inversão do ônus da prova senão em face de lei expressa e em defesa da fragilidade processual do hipossuficiente, sendo inatacável o princípio da presunção da inocência; e
  4. d) a responsabilidade objetiva, embora aceitável no plano da responsabilidade civil, de cunho indenizatório e reparatório, não o é em matéria repressiva.

2.2. A irretroatividade da interpretação dada pelo CADE à norma legal vigente

Como se viu, a introdução do conceito de infrações “por objeto” ou “per se” é ágrafa, ou seja, não se encontra no texto legislativo, sendo mera interpretação dada a partir do voto proferido pelo Conselho Marcos Paulo Veríssimo em fevereiro de 2013[67], cerca de um ano após o início de vigência da Lei n.º 12.529/11.

Ocorre que, não infrequentemente, o CADE se debruça sobre acusações de cartel cujo período de investigação antecede tal interpretação, sejam elas referentes a fatos ocorridos sob a égide da Lei n.º 8.884/94 ou antes, ou mesmo da atual de Regência, porém anterior a fevereiro de 2013.

Nestes casos, como é cediço no Direito Intertemporal, a lei nova de caráter repressivo, salvo a hipótese de reformatio in melius, não pode retroagir, aplicando-se, portanto, ao fato, jurídico ou antijurídico, a norma dominante quando de sua ocorrência (tempus regit actum).

Este entendimento não se aplica somente aos crimes comuns, mas se estende a todo ato infracional, passível de punição, mesmo administrativo, conforme expõe Carlos Maximiliano:

 

“O princípio da irretroatividade geral e retroatividade benéfica se aplica a qualquer infração penal, não só os referentes a crimes, como a delitos de simples polícia, às contravenções, às punições disciplinares e a outras faltas para as quais se cominam castigos em leis, regulamentos e portarias, federais, estaduais e municipais; visto que a razão de assim agir é a mesma em todos os casos”.[68]

Nesse sentido, portanto, o princípio da irretroatividade das leis impediria a aplicação das normas substantivas da Lei n.º 12.529/11 aos fatos que lhe são pretéritos. A tese, além de pacífica, a não exigir maiores digressões, foi, por múltiplas vezes, acolhida desde priscas épocas pelo próprio E. CADE, de que é mero exemplo voto vencedor proferido pelo i. Conselheiro Marcelo Monteiro Soares:

 

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[67] Voto proferido no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18, julgado em 20 de fevereiro de 2013.

[68] Maximiliano, Carlos. Direito intertemporal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. P. 299.

 

 

“Primeiramente, manifesto-me de pleno acordo com o entendimento da douta Procuradoria deste Conselho, Dra. Carla Barroso, quanto à ocorrência dos fatos e à vigência da Lei n.º 8.158/91, quando afirma, verbis: ´a conduta da Representada foi incursa no art. 3º, inciso XIII, da Lei n.º 8.158, de 8 de janeiro de 1991. As licitações em que a Representada teria adotado a conduta abusiva – preços abaixo do custo real de produção, com prejuízo à concorrência – ocorreram em 30.11.1988, 23.2.1989, 1.9.1989 e 18.9.1990, antes, portanto, da vigência da Lei n.º 1.858/91. Não incidem, pois, na espécie, as disposições da citada Lei naquilo que diz respeito às normas substantivas”.[69]

Esse entendimento, aliás, é hoje remansoso e recorrente na jurisprudência do CADE, o que, aliás, por ser fato notório, dispensa maiores digressões.

Como se não bastasse e outrossim, e nessa linha hermenêutica e principiológica, dispõe a Lei n.º 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, que esta deverá obedecer, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Aliás, não se pode deixar de notar, desde logo que o espúrio entendimento da infração “per se” afronta ostensivamente, não um ou outro, mas todos os princípios arrolados na Lei do Processo Administrativo.

Mas, dispõe ainda esse diploma (art. 2º, parágrafo único, inciso XIII) que:

Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,

 

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[69] Vide Processo Administrativo n.º 10/91, sendo Representante Fogarex – Artefatos de Camping Ltda. e Representada Lumix Química Ltda.

 

 

proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[…]

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação (grifou-se).

O texto normativo é de tal clareza que chega a restaurar o brocardo, “in claris cessat interpretatio[70].

Isto é, deve a Administração Pública, não apenas abster-se de aplicar retroativamente a lei punitiva nova, a menos que mais benigna, como também lhe é vedado adotar a nova interpretação, salvo, talqualmente, se in mitius.

Nesse esteio, visando a segurança jurídica e a estabilidade da ordem jurídica, não somente as leis não retroagem, mas também as interpretações construídas a partir de determinada norma. Portanto, aplica-se ao fato, jurídico ou antijurídico, tanto a norma, como a interpretação dominante quando de sua ocorrência.

Com efeito, a busca do propósito exemplar da segurança jurídica foi objeto de várias decisões proferidas pelo CADE, sob a inspiração da Lei do Processo Administrativo, até mesmo ao examinar a questão de mudança de posicionamento jurisprudencial do CADE, na leitura da lei, quando esta se tornou mais gravosa.

Iniciou-se essa salutar preocupação em caso de intempestividade na apresentação de ato de concentração, sob o regime da Lei n.º 8.884/94, que, realizado sob a égide de jurisprudência mais benigna, foi

 

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[70] Como dizia Carlos Maximiliano Pereira Santos (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Livraria Editora Freitas Barros, Rio de Janeiro, 1940, pág. 51),quando nas palavras não existe ambiguidade, não se deve admitir pesquisa acerca da vontade ou intenção”.

 

 

julgado sob a visão do entendimento mais conservador, quando se entendeu ser inadmissível a retroatividade do pensamento novo, mais oneroso ao Administrado que pautara sua conduta à luz da orientação jurisprudencial anterior, mais favorável.[71]

Ora, o conceito de infração “per se” ou “por objeto” foi, como visto, introduzido na jurisprudência do CADE pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18[72], em fevereiro de 2013, inspirado em guia de análise de condutas e jurisprudência da Comissão Europeia, que tanto lhe entusiasmou a ponto do exagero de afirmar que a legislação nacional tinha por origem a europeia.

 

Ou seja: a nova interpretação sequer se referia à anterior Lei n.º 8.884/94, nem mesmo à vigente Lei n.º 12.529/11, antes de fevereiro de 2013, tendo assim surgido cerca de um ano após o início de vigência desta.

Da mesma forma, a interpretação da Lei Concorrencial foi alterada em novembro de 2016 no tocante à aceitação da suficiência da prova indireta, principalmente em tema de cartéis internacionais, como bastante à condenação, equiparando-a, em termos de valor probatório, à direta.

Assim, a partir dos julgamentos dos Processos Administrativos n.ºs 08012.005930/2009-79 (cartel internacional de CRT), em 9 de novembro de 2016[73], sob a relatoria do Conselheiro Gilvandro Vasconcelos Coelho de Araujo, e 08012.005255/2010-11 (cartel internacional de placas de memória DRAM), em 23 de novembro de 2016[74], sob a relatoria do Conselheiro

 

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[71] Cf. Voto no Ato de Concentração n.º 08012.010025/98-44, de 8 de dezembro de 1999, Requerentes: Pearson Inc. e Viacom International Inc.

[72] Para mais informações, vide Voto Vista no Processo Administrativo n.º 08012.006923/2002-18.

[73] Processo Administrativo n.º 08012.005930/2009-79, sendo Representante SDE, ex officio, e Representados Asahi Glass Co. Ltd. e outros.

[74] Processo Administrativo n.º 08012.005255/2010-11, sendo Representante SDE, ex officio, e Representados Elpida Memory, Inc. e outros.

 

 

Márcio de Oliveira Júnior, os cartéis internacionais passaram a ser julgados e condenados pelo CADE caso se verificassem efeitos diretos da conduta anticompetitiva – por exportações ao Brasil do produto acabado contaminado pelo cartel internacional – ou indiretos – por exportações ao Brasil do produto contaminado pelo cartel internacional considerado como insumo em outro bem.

Tem-se aqui enfatizada a similaridade do erro da aplicação retroativa de nova interpretação da lei, com a contradição lógica da adoção da tese radical da infração “por objeto” ou “per se”, na medida em que, nestes casos, haverá, necessariamente, um simulacro da “análise dos efeitos”.

Em resumo, tem-se, assim que nem a nova interpretação (que busca introduzir o conceito de infração “por objeto”/ “per se”), nem aquela sobre a suficiência da prova indireta para fins de condenação, pode ser aplicada a fatos anteriores a fevereiro de 2013 e novembro de 2016, respectivamente.

 

 

 

 

 



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